poesia, Carlos Lopes Pires

domingo, 28 de fevereiro de 2021

mandei poemas a uns amigos

sobre como Deus deixou

de existir a si mesmo

 

e eles não entendem

como pode ser tal coisa

 

então expliquei

 

certa vez

Deus chegou junto de si

e pensou

 

pára de existir-me

sábado, 27 de fevereiro de 2021

muitos seguem

os grandes mestres

e os livros que tudo ensinam

 

tu e eu

partilhamos a chuva

que esta manhã

nos trouxe o mundo

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

                      para antónio rêgo 


visitar um amigo

é como ir ver os peixes

 

e onde antes havia palavras

chove abundância e dentro

 

que é

uma outra maneira

de abraçar alguém

 

mas não se pode abraçar

um sentimento

ainda que seja

azul

 

porque inalcançável

é o coração de um amigo

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

há dias disseram-me

que não há nada de útil

na minha poesia

 

e eu concordei

 

todos os dias

a limpo de utilidades

e outras coisas

 

demais

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

desci na água

 

e desenhei o teu rosto

a partir do meu

 

cobri-me de água

 

e era uma casa

tão grande

e do tamanho

 

do mundo

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

                         para o meu gato patitas


tão cedo desta vida

e tão depressa em dor

uma rosa da outra

te levou


que nenhuma

luz no caminho

agora


te conduz

a nossa casa

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Deus está em dez mil

lugares diferentes

 

foi o que disse

o rouxinol

 

mas nenhum se parece

com os lugares

daqui

domingo, 7 de fevereiro de 2021

quando era muito menino

acreditava nos pássaros

e em tudo

 

o que neles se move

 

depois

vieram as paredes

e outros lugares sem portas

 

mas foi no azul e chuva

que encontrei

 

a tua sombra

sábado, 6 de fevereiro de 2021

senhor

 

tu nunca escreveste

por linhas tortas

 

nunca passaste por nós

como se evitasses a chuva

 

nem paraste à noite

entre duas paredes

sem sombra

 

não prometeste

um mar de rosas

                               do livro "Onde" (2001)


Sentei-me entre os

calmos animais da terra

 

e vi que estavas entre eles

e depois deles,

 

e que o teu peso vinha das coisas,

embora por dentro as suportasses,

 

e que havia uma clareza nos animais,

uma ignorância de não saber

nem querer,

 

o encanto de existir apenas

sem porquê,

 

e que eram claros os seus olhos

e os gestos,

 

e que no seu coração uma luz

havia

 

e eras tu.


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

benditas as crianças da chuva

 

que se movem na lama

sem queixumes

 

que não pedem não exigem

não rezam

 

e silenciosas

pela água vão

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

creio em tudo o que cai

creio na harmonia do chão

e seus derivados

 

creio nas formigas

 

não creio na gramática

do que está em cima ou voa

pois tudo os atrai para baixo

 

mas creio no silêncio

que é uma criatura do chão

 

assim os insectos

que se movem entre as coisas

e as tuas mãos de lama

 

creio no pó das estradas

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

 vê se entendes

 

vim a este mundo

para estar contigo

leva-me contigo pássaro

da manhã

para lá de tudo o que dói e cansa

pelas frestas do sol

até às janelas do mundo

 

sem peso nem mágoa

leve e sossegado

na aragem das tuas asas

 

incauto e puro

como os teus olhos

 

até que todas as portas

abertas sejam

 

no meu coração

e então o poeta

disse ao poema

 

fala comigo

 

leva-me

para lá dos espelhos

 

escreve-me

nas tuas palavras

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

certa vez

perguntaram a um poeta

 

se Deus existe

onde está

 

o poeta abriu as mãos

e assim ficou em silêncio

 

como pode ser que Deus

se encontre nesse vazio

perguntou alguém

 

e então o poeta disse

 

em que outro lugar

poderia estar

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

hoje

que é dia de nada

 

louvemos os amigos

e louvemos também os outros

 

os estranhos os próximos

os que não nos agradam

 

os que discordam profundamente

do que fazemos ou pensamos

 

pois hoje é dia de nada

 

dia do gato e do cão

dia do melro no quintal

 

de uma vez ao menos

pousarmos no coração

 

do outro