poesia, Carlos Lopes Pires

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

possivelmente
 
todos teremos perdido
de vista alguém
neste ano que agora passa

um lugar a menos na mesa
na rua ou no autocarro

uma voz que já só vive
nos retratos

uma ausência
que agora notamos mais
na forma de um desgosto

ou no vazio sentido no peito
porque possivelmente aí morava

já que todas as presenças
ocupam partes do nosso corpo

e depois são como as maçãs
em falta numa árvore

possivelmente
desejamos que no próximo ano
se mantenha tudo como está

as mesmas árvores
as mesmas aves
e as mesmas mãos que definem
cada um
dos nossos amigos

e possivelmente sabemos
que jamais será assim


domingo, 30 de dezembro de 2018


não consigo explicar
aos pássaros

que eras talvez
mais que uma presença
que para ali andava
e me seguia

e ainda menos explico
como me dói tanto
a tua ausência

sábado, 29 de dezembro de 2018


é um desgosto

não é um nome escrito
num dia de chuva

nem uma coisa quebrada
como um copo ou uma janela

alguém que acena
de um comboio
numa noite muito escura

o que não pode
já nunca fechar-se

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018



não há números para ti

não há palavras
que possam encher
o livro da tua ausência

como se tudo fosse
agora um longo e austero inverno
preparo-me para viver
sem ti

sentado lá fora
à tua espera

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

ainda espero
que regresses do quintal
e te aninhes junto de mim

sem uma única palavra

pois todas as palavras
te eram inecessárias
quando me tocavas
com a tua
patita de carinho

porque assim é o amor
de um homem
por seu gato

sábado, 1 de dezembro de 2018


Na montanha está a flor

Roma construiu impérios, estradas, templos,
espalhou a cultura e a palavra
e ainda hoje é admirada.

Mas é na montanha que está a flor.

Homens duros, habituados a ver o inimigo
no escuro, fizeram as guerras justas e injustas
e todos acreditaram na sua justeza.

Mas é na montanha que está a flor.

Milénios de guerras e sangue, onde estão
os gritos e as dores?
Por cada milímetro de evolução,
quantas vítimas tombaram?
Livros, discursos, vaidades, para que servem?

É na montanha que está a flor.
 
                                (In A invenção do tempo e outros poemas, 1993)

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Ainda de algures na década de 90 do século passado, um poema jamais publicado.
           
                         Bolotas
  
Nunca esperei ver tanto nojo na minha vida.
As correrias que se fazem ao longo
dos corredores, as bolotas,
 
a lavadura servida em pratos finos,
os porcos e os abutres infestando as salas de reuniões,
as explicações, a boca cheia de gordura e ossos,
as mãos nos bolsos, o cabelo impecavelmente penteado,
as preocupações, 
esse incómodo que é haver pessoas
capazes de sofrer e que persistem e teimam,
não obstante as principais linhas
da política internacional,

tenho passado os últimos dias
com náuseas.

 

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Do distante ano 1992, um poema nunca publicado.


             Acuso-te

A ti acuso,
e a quantos te acompanham,

de todos os crimes cometidos
e dos ainda guardados e por fazer.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Hoje venho aqui recordar o poeta José Carlos Gonzalez, querido amigo falecido em Kerlaz (Bretanha) há quase 20 anos. Poema de um livro, que lhe dediquei, chamado "Novos poemas da Bretanha seguidos de Kerladágio" (1999).


A insónia do poeta

É quase inverno na Bretanha.

As florestas enchem-se de sombras
e pássaros. Alimentam-se os peixes
no coração das rias. O vento percorre
o espírito das árvores,
ensufla as velas dos barcos ao largo.

A gata respira o silêncio
onde se escondem os ratos do campo.

A noite cai sobre Kerlaz.
Tudo sossega, tudo dorme.

Só o poeta persiste
na sua insónia do mundo.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

               Poesia (do mesmo livro, em resposta a António Nunes)

Essa flor tantas vezes nomeada em vão,

casa, esquina, portal e rua,
segredo escondido nos teus olhos
tão de ervas e brancura,
aí, onde nada fecha nem cerca
o coração,
o coração deste homem,
o teu, o dele,

sem nada mais que seu,
pequeno, mortal,
juntando ossos, galhos,
água e barro modelando o verme,
o insecto, o voo
desta criatura cega e muda
na procura da verdade aberta a
todos os caminhos,
a verdade ignorada que

as suas mãos buscam
nessa flor tantas vezes nomeada

em vão.
                         (In Em cada um, 2001)

Começo

 
Vi como tudo começou na terra dos homens.

O ar, o frio, o músculo, o longo braço das manhãs
em busca da claridade.
Vi o tempo expandir-se
no uivo do lobo e na manha da raposa.
Vi o apego da formiga na dureza da madeira.
Vi como a criatura dominou a terra,
porque é na água que tudo começa.
Vi como as coisas prosseguiram
em desenhos circulares nas rochas,
e a forma que depois tomaram,
atravessando as clareiras da floresta
em direcção aos rios.
Vi que o mundo estava frio:
o frio sobre a mesa,
o frio sobre a porta de entrada.
Vi o frio transformar-se em canções.
Vi como o olhar do melro
pesou sobre o silêncio dos telhados,
e como a chuva tem origem em certas estações.

Nada mais havia, e vi que o mundo formou as suas cinzas
a partir das areias e dos peixes que há nos lagos.
Vi alguns homens de joelhos, fazendo estranhas orações.
Vi, então, que os homens têm olhos animais
e abismos no coração.
E vi que este é o princípio de toda a dor.

Vi que tudo começa no coração dos homens.

                                     (Em cada um, 2001)
 

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

                     (prece para o dia de todos os santos)

que tu me ouças

e não leves mais ninguém
do meu quintal

que fales
na minha boca os seus nomes
e assim os protejas da dor
e ausência

que nas suas mãos e coração
apenas tomilho e açafrão

e não deixes
mais lugares vazios

quinta-feira, 18 de outubro de 2018


tem compaixão de nós
senhor
 
que somos animais aflitos
e sem regresso

e construímos erguemos fazemos
 
mas por dentro somos
vazios e desertos

 

sexta-feira, 12 de outubro de 2018


                           oração

porque estás acima do mundo

das misérias e dos muros
de tudo aquilo que me prende e dói

e acima do mundo
quando olho alguma coisa
nos teus olhos

e me parece que tudo
é então tão grande

que nas tuas mãos deixo o cansaço
e as feridas que trago da cidade

o que chamam realidade
os papéis os compromissos
as portas e as datas

e sigo então as asas das gaivotas
que me dizem

que só tu estás
acima do próprio mundo
                         (in a noite que nenhuma mão alcança)
 

terça-feira, 9 de outubro de 2018


poeta

lentamente o orvalho
as casas guardando o quente bafo
dos animais

as árvores sossegadas
as aves escutando os barcos
em silêncio nas docas

mas tu
ó filho de ninguém
tu vives nas mágoas
e em todas as bocas

                (poema impublicável) 

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

            (para nunes e zaida)
 
aos amigos
desejamos o melhor

temos pensamentos de cuidados
para que as rosas durem sempre

aos amigos damos as mãos
em segredo

e é também em segredo
que usamos as palavras
com cuidado

em certas noites
sentamo-nos junto deles
e ficamos calados e quietos
a sentir o mistério que há lá em cima

até que um dia
se  move alguma coisa nas estrelas

e ficamos todos em silêncio

 

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

              breve meditação em Deus

hoje fui ver os pássaros
do meu quintal

como não chovia

sentei no chão a tarde

levar-me
ao teu coração

terça-feira, 18 de setembro de 2018

venho aqui mãe

para lembrar o quanto
me pesas no coração

nas maçãs nas árvores
nas folhas cheias de retratos teus

e nesta dor que não cabe
e por isso transporto até ao mar

até depois das casas
e dos barcos

e aí respire em silêncio

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

       (poema de amor por pablo)
 
que este amor seja
uma estrela

uma rosa tocada sempre
pela primeira vez

mas intocável

como são os teus dedos
em movimento

e que por mais distante
ainda a mais próxima

e nunca morrendo
mesmo findo este corpo
esta sombra este nome

e por todo o lado viajando
nos teus passos

no teu coração

na ponta das árvores
ou na cor dos pássaros

infinito mesmo em silêncio

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

        (poema para pablo)

o teu coração
seja sempre bastante

e não se contente
com os dias de sol

e recolha então das nuvens
a chuva e os seus desenhos

e deles faça barcos
em todos os lugares que há
nos teus olhos

que sejas sempre menino

terça-feira, 11 de setembro de 2018

pablo disse-me

Deus fabricou a água
fazendo-a

não houve necessidade
nem preocupações

depois ocorreu-lhe
que era bom que houvesse chuva
e criou as plantas os peixes
e o mar

e nada disso estava
em algum lugar
por existir

silêncio era o que havia

e silêncio era Deus


domingo, 2 de setembro de 2018

tudo em ti é silêncio

e o meu filho pablo pergunta
por que não falas
não dizes

nem ao menos um sinal
que seja

e eu digo-lhe
que a tua natureza é essa
sem indícios nem sinais

tu és silêncio

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

                 (para Zaida no falecimento de sua mãe)
 
perguntaram-lhe
se era tarde
mas nada disse

os olhos a boca
não viam nem sabiam

era um pássaro
que no seu coração havia

terça-feira, 7 de agosto de 2018

                               poema em jeito de bilhete

olá amigos
hoje é dia do meu aniversário

por isso parabéns a mim
por ter conhecido pessoas
como vocês

como sinal de gratidão
a cada um enviei

uma árvore um quintal
um azul com peixes dentro
o único limão do meu limoeiro
e um punhado de maçãs

com tudo isto vai também
o meu gato patitas

mas este agradeço que devolvam
depois de vos fazer rom rom

obrigado

 

sábado, 4 de agosto de 2018

                        oração de pablo

eu ainda não sei
o que são as coisas
nem a grande musica
do mundo

e também não te conheço

então à noite
abro as janelas todas

e é tudo
o que peço

 

terça-feira, 3 de julho de 2018

voltei ao meu quintal
e voltei a encontrar Deus

sentei-me ao pé dele
como se fosse a sua sombra

e o resto da tarde recordámos
os telhados das casas
a chuva e as coisas tantas
que acontecem na nossa vida

e como tudo
é bonito e com mistério

então demos as mãos
e rezámos

segunda-feira, 2 de julho de 2018

uma flor para albano

que seja da janela
o longo olhar
que tudo alcança

sombra que seja do corpo
o sossego no coração
que se abre em flor

na outra mão
             (para albano martins)
 

segunda-feira, 18 de junho de 2018


a dor é uma ferida que se abre

o amor é uma dor que nunca se fecha
a ausência é um pássaro que se vai
uma coisa que nos falta

e para a qual não temos nome
                                           (para o avô fausto, poema de Carlos Lopes Pires,
                                                     ilustração de Fúlvio Capurso, seu neto,      
                                                     quando da notícia do seu falecimento)

segunda-feira, 11 de junho de 2018

subimos
e subimos os degraus

mas nenhum nos conduz
ao lado de dentro do mundo
       (para albano martins - 06/06/2018)

bem aventurados aqueles
que da água em poemas
revelaram

o que da lama
a sua humana condição

não em armas fogo ou feridas

mas em anjos de leveza
iluminados

e que chegados
onde todos um dia chegam

já nada de si levavam

sexta-feira, 8 de junho de 2018


                     liturgia das horas ou salmo contínuo

 ouvirei quem és pela manhã

não andarei
por caminhos de outros
nem desperdiçarei os meus

e nada que me digam
em mim te alcançará

e nada me faltará
mesmo que sejas distante
e ausente

porque tu velas por mim
na minha ausência

guardas-me quando
estou longe

dás-me a tua mão
ainda que seja minha
aquela que encontro

e ainda que seja este o corpo
que em mim descanse
talvez um dia as árvores
se lembrem de nós

de quando os nossos nomes
tinham rostos

e nós então distantes
de tudo o que tocámos

 

quinta-feira, 31 de maio de 2018

e nada mais pese
 
àquele que te escreve
do deserto
 
percorrida que foi
bem mais que metade
da sua vida
 
e Ninguém sabe
onde está

segunda-feira, 21 de maio de 2018

hoje voltei
a estar com ele

agarrou uma sombra
que se movia
no ar e nas árvores

e depois riu-se muito
e perguntou-me sem querer

vê lá se consegues anoitecer
no teu quintal

quinta-feira, 10 de maio de 2018

gosto de ti

por não seres como eu
nem parecido com nada
que eu conheça

por não estares
onde eu quero que estejas

e nunca saber
de ti