saúdo os amigos
e saúdo o tordo-eremita
comparo-os na beleza
do que cantam
comparo-os na leveza
do incomparável
não posso pedir-te que venhas comigo. nem posso pedir-te que vejas o mesmo que eu vejo. cada qual transporta a si mesmo. também não posso pedir-te que saibas do que eu sei e que todos os dias me acontece desde há muito. repara: estou cego e um cego não pode pedir aos outros que vejam o que ele mesmo não sabe que vê.
sê clandestino: segue a pista
seres clandestino não significa andares escondido ou destruíres o que
está instituído. Seres clandestino significa seres autêntico. E é só porque ser
autêntico é tão raro, que o mais das vezes provoca estranheza e leva a que se
esteja por fora da realidade formal ou mundo instituído, o da normatividade, da
banalidade.
Ser clandestino significa encontrares um desígnio pessoal, teu, de mais
ninguém, que podes partilhar, é claro, mas sempre compreendendo que não podes
impôr o que não te pertence. Portanto, ser autêntico é em relação a este
desígnio pessoal, e que não se confunde com as risíveis manifestações
panfletárias.
Ser clandestino custa. Em geral, terás de prescindir das atribuições
possíveis de méritos, de reconhecimentos por parte de pessoas ou grupos que
cultivam a normatividade. Podes até aceitá-los, mas sempre ciente, sabedor de
que não deixas que te roubem o espírito clandestino, porque sabes que não
passam de entretenimentos perante a tua viagem única. Aprende que ser
clandestino não é um atributo deste mundo. É uma escolha ética que tu fazes em
teu próprio nome. E na história da humanidade não estarás só: muitos outros,
antes de ti, fizeram essa escolha. É longa a linhagem que não acaba em ti. Se
quiseres, segue essa pista.
Ser clandestino chega a doer quando observas o triunfo dos medíocres.
Pessoas sem talento, imaginação ou inteligência hão de passar-te à frente. Por
que te espantas?: Elas estão por toda a parte. São a maioria. Mas escuta-te: tu
nasceste sem princípio e podes construir a tua ausência. Não precisas de mais
nada. Basta que te cales e busques em ti o espírito do gato: nunca desistas da
autenticidade. O mundo que te deram é apenas uma versão da realidade. Há outras
possíveis. Segue a pista.
Ser clandestino é seguires o caminho do bem. E que por onde quer que vás
levas contigo uma mensagem cósmica. Não sigas religiões ou livros adjacentes:
apenas querem roubar-te a alma. Não queiras seguir santos, mestres ou gurus:
são todos imitações uns dos outros. E não sabem nada que tu já não saibas: o
mundo é um mistério e a existência um prodígio. Não deixes que te encerrem no
seu quarto escuro. Crucifica-te na tua cruz e salva-te da banalidade. Eleva-te
ao lugar mais alto que possas imaginar e faz da tua vida uma existência
generosa e afável. Segue a pista.
Talvez os teus amigos não te ouçam, talvez não compreendam. Ou talvez
sejas tu que não te explicas ou não compreendes toda a grandiosidade que
recebeste. Não importa: recorda que no cosmos nada está fora de ti. Que cada
coisa ou partícula já um dia foram como tu. E tu simplesmente estás de
regresso.
Clandestina-te. Segue a pista
hoje dei conta
que sou teu amigo
talvez eu não
te faça ainda falta
há muitas distâncias
às vezes são paredes
casas países
outras vezes sou eu
que estou calado
mas hoje foi-me dito
por um sinal
que alguma coisa
me puxa para ti
repara
não segui estrelas
nem foste anunciado
num livro
foste-me
anunciado no coração
o poeta não busca posteridade.
ele aprendeu que essa é uma palavra sem fundo
o poeta não busca prestígio. ele
sabe que tal palavra pesa muito e cega
o poeta não escreve para que um
leitor o leia. poucos serão os que, realmente, hão de lê-lo
o poeta não tem motivos úteis
para escrever. ele desconhece por que escreve
o poeta não escreve para que
outros se sintam alegres ou tristes. ele revela
o poeta não apregoa verdades. ele
torna-se a sua verdade
o poeta sabe que nenhum poema é
escrito com palavras
o poeta nunca há de estar onde o
procuram
o poeta não morre uma vez. morre
as vezes necessárias
o poeta escreve contigo. embora
ainda não saibas, tu és Deus
ó Deus
que vives
sem lugar
e que nem
o nome te
pertence
e aquele
que traz
uma flor
para dar-te
para
dar-te
como se em
ti
houvesse
mãos
e se
houvesse
seria um
coração
igualzinho
ao nosso
este que
deveria
servir-nos
para amar
não a ti
mas aos
outros todos
e que
afinal
e depois
só nos
serve
para
morrer
as metáforas
são coisas sobre
outras coisas
nos meus poemas
não há coisas
encavalitadas
se digo escaravelhos
é escaravelhos
se digo sol
se digo muros
a nada mais me refiro
os anjos dos meus poemas
não são pássaros
nem vaga-lumes
ou aparições
de almas penadas
não são
candeeiros da cidade
são apenas anjos
igualzinhos a ti
e a mim
só que voam