há poetas que escrevem
para a
literatura
eu escrevo
para estar
contigo
para que
mesmo depois
da minha
ausência
fique uma
dádiva
de
abundância
(a noite que nenhuma mão alcança, 2020)
não posso pedir-te que venhas comigo. nem posso pedir-te que vejas o mesmo que eu vejo. cada qual transporta a si mesmo. também não posso pedir-te que saibas do que eu sei e que todos os dias me acontece desde há muito. repara: estou cego e um cego não pode pedir aos outros que vejam o que ele mesmo não sabe que vê.
falta-me sempre distância
quando
tento explicar
que a minha
poesia
é uma
questão de ausência
e não me
falem de literatura
falem-me
antes de um homem
que teve
um gato
e dos seus
poemas tristes
porque a
tristeza
é um dom
da abundância
e foi
criada
ao
terceiro dia
para que
nunca estejas só
e tem
desenhos na areia
tem
feridas abertas nas mãos
uma coisa
que dói
no coração
da madeira
(onde crescem as maçãs, 2020)
hoje
venho
falar-te de abundância
e abro-te
as mãos
abraço-te
multiplico
a água
por muitas
vezes pássaros
e vou por
onde vou
com os pés
as mãos
os olhos
que tudo
me guia até ti
e transporto-me
em abundância
ao teu
coração
semeio
e movo as
sementeiras
para que
me digas
para que
me fales
para que
me tenhas
sempre
contigo
(onde as maçãs crescem, 2020)
todas as manhãs se levantam
e caminham para a morte
e das mãos erguem casas
desenham cores lápis algodão
abraçam os filhos e os retratos
olham o reflexo das lágrimas
que deixam pelo chão
e depois vão pelas tardes distraídos
misturam-se com as aves
evitam a chuva e os dias frios
mas morrem por todo o lado
ou então chegam tarde e à noite
e abraçam os filhos
inventam alegrias e palhaços
para que a vida não pareça
tão estreita
(a noite que nenhuma mão alcança, 2018)
hoje encontrei Deus
pousado na nossa nespereira
ele não faz milagres
ou coisas difíceis de acontecer
ele não ordena chuva
e chove
nem que as árvores tenham sombra
ou que a luz brilhe na água
por vezes
encho o meu coração
de mais e mais ignorância
e vou então junto dele
e digo-lhe baixinho ao ouvido
sei que és tu
muitos escrevem a um deus
cheio de letras grandes
com intervalos de importância
eu dirijo-me a um Deus
que não quer existir-se
para além da nespereira
do meu quintal
que louva e canta
a ignorância em todas
as gramáticas do mundo
que não quer nem sabe
e vai por onde vai
e quando me perguntam
que género de Deus é este
eu apenas posso dizer
sei de um pássaro
desde há muito
que a ignorância me comove
e finjo que não te vejo
baixando devagar
sobre a nossa nespereira
tu também me olhas
e fazes de conta que não me vês
e então cantas
cantas
como se cada hora
fosse um verão sem feridas
e depois vagueias pelas outras árvores
e fazes com que seja noite
e louvo-te em toda a minha ignorância
louvo-te quando te encontro de manhã
e vejo que não te foste
e então te peço
fica comigo
que é quando fazes de conta
que não estou
era verdade
e não se via
era como um segredo
uma mão
que se abria ou fechava
e onde tudo acontecia
às vezes
em certas noites
e diante do mar e seus vestígios
as crianças perguntavam
mas os adultos não sabiam
era um segredo
e de uns
para os outros seguia
e nunca se mostrava
não tinha nomes
nem nada dentro
era apenas e quando
(o meu filho pablo)
há dias enterrou um tesouro
no quintal
dois rebuçados uma moeda
dois pequenos cordéis
e uma carta de jogar
depois estimou o tempo
o chuvoso inverno
o frio
a terra e as plantas
observou de perto
a nespereira
e vigiou os gatos
dos ventos
considerou a inclinação
por fim
sentou-se e abriu as mãos
porque estás acima do mundo
das
misérias e dos muros
e de
tudo aquilo que me prende e dói
e acima
do mundo
quando
olho alguma coisa
nos teus
olhos
e me
parece que tudo
é tão
grande
que nas
tuas mãos deixo o cansaço
e as
feridas que trago da cidade
o que
chamam realidade
os
papéis os compromissos
as
portas e as datas
e sigo
então as asas das gaivotas
que me
dizem
que só
tu estás
acima do
próprio mundo
Vai. E por onde quer que vás
leva contigo a canção.
Afaga-a dentro de ti
porque ela é tua
e alumia o teu caminho
mesmo quando a noite se torna
escura
e tu perdido.
Guarda-a no teu peito como uma
flor,
mas nunca a queiras só para ti:
reparte-a
para que os teus amigos se tornem
mais belos e mais perfeitos:
que a vida é única
e por dentro há uma música
qualquer
que nos atrai.
muita gente tem alguma coisa importante em sua vida. por ela cresce e por ela se transforma. podem ser os filhos, os netos, os amigos. há quem reze esperando um lugar feliz depois da morte. há pessoas que ambicionam coisas simples, como o sossego, uma noite de chuva com silêncio, ou a sombra de uma árvore. há também aquelas, bem as vejo, que assomam de uma janela, para tudo aquilo em que não tocam. há quem tenha um livro aberto numa página que nunca mais foi fechada. aí ficou, como se o livro, mais que palavras, seja uma outra coisa que não sabe, mas onde vê, mais que um pensamento ou um mar, mais que a vida ou o mundo, tudo aquilo em que a sua própria existência não cabe. são os poemas.