poesia, Carlos Lopes Pires

sábado, 31 de julho de 2021

há poetas que escrevem

para a literatura

 

eu escrevo para estar

contigo

 

para que mesmo depois

da minha ausência

 

fique uma dádiva

de abundância



                     (a noite que nenhuma mão alcança, 2020)

falta-me sempre distância

 

quando tento explicar

que a minha poesia

é uma questão de ausência

 

e não me falem de literatura

 

falem-me antes de um homem

que teve um gato

e dos seus poemas tristes

 

porque a tristeza

é um dom da abundância

 

e foi criada

ao terceiro dia

para que nunca estejas só

 

e tem desenhos na areia

tem feridas abertas nas mãos

 

uma coisa que dói

no coração da madeira



                        (onde crescem as maçãs, 2020)

hoje

venho falar-te de abundância

e abro-te as mãos

abraço-te

 

multiplico a água

por muitas vezes pássaros

 

e vou por onde vou

com os pés as mãos

os olhos

 

que tudo me guia até ti

 

e transporto-me em abundância

ao teu coração

 

semeio

e movo as sementeiras

 

para que me digas

para que me fales

 

para que me tenhas

sempre contigo



                       (onde as maçãs crescem, 2020)

sexta-feira, 30 de julho de 2021

como não sei

o que é o amor

fui perguntar a um pássaro

 

e perguntei-lhe porque voa

e que espécie de ar

o sustenta

o quê

 

porque realmente

não sei o que é o amor

não sei

 

e o pássaro

que possui o prodígio

dos impossíveis

 

pousou

no meu coração



                   (se houver domingo à tarde, Set. 2021)

plantei uma árvore

no quintal

 

e vieram pássaros

 

desenhei uma noite

na parte de cima do azul

 

e vieram estrelas

 

então

desenhei uma rosa

 

e eras tu

terça-feira, 27 de julho de 2021

foi-lhe dito por uma voz

que parecia vir

do céu

 

foi-lhe dito

 

foi-lhe dito

que eras tu

 

e acreditou



                     (se houver domingo à tarde, Set 2021)

voa pássaro

voa

 

leva dias bonitos

aos meus amigos

 

azuis

cinzentos

ou mesmo

que de chuva sejam

 

e sempre esses dias



                       (se houver domingo à tarde, Set. 2021)

todas as manhãs se levantam

e caminham para a morte

 

e das mãos erguem casas

desenham cores lápis algodão

 

abraçam os filhos e os retratos

olham o reflexo das lágrimas

que deixam pelo chão

 

e depois vão pelas tardes distraídos

misturam-se com as aves

evitam a chuva e os dias frios

 

mas morrem por todo o lado

 

ou então chegam tarde e à noite

e abraçam os filhos

 

inventam alegrias e palhaços

para que a vida não pareça

 

tão estreita



                 (a noite que nenhuma mão alcança, 2018)

                                                         senhor

 

faz dos meus poemas

as palavras que te faltem

 

e neles não ausentes a dor

que faz de uma vida

o que ela é

 

e não os divulgues nem acrescentes

 

deles faz

o que ontem de manhã choveu

 

pois tudo o que houve

                                                                            foi tanto e era teu


                                                                                           (a noite que nenhuma mão alcança, 2018)

os que precisam invocar-me

 

não sabem

sobre o prodígio da inexistência

 

a mão fechada

não é a que dá abundância


                    (onde as maçãs crescem, 2020)

segunda-feira, 26 de julho de 2021

talvez um dia as árvores

se lembrem de nós

 

de quando os nossos nomes

tinham rostos

 

e nós então

tão perto

de tudo o que tocámos



                    (aquele que não ouvirás mais, 2019)

domingo, 25 de julho de 2021

há dias disseram-me

que não há nada de útil

na minha poesia

 

e eu concordei

 

todos os dias

a limpo de utilidades

e outras coisas

 

demais


                       (a minha poesia é uma ignorância, 2017)

hoje encontrei Deus

pousado na nossa nespereira

 

ele não faz milagres

ou coisas difíceis de acontecer

 

ele não ordena chuva

e chove

 

nem que as árvores tenham sombra

ou que a luz brilhe na água

 

por vezes

encho o meu coração

de mais e mais ignorância

 

e vou então junto dele

e digo-lhe baixinho ao ouvido

 

sei que és tu

sábado, 24 de julho de 2021

muitos escrevem a um deus

cheio de letras grandes

com intervalos de importância

 

eu dirijo-me a um Deus

que não quer existir-se

para além da nespereira

do meu quintal

 

que louva e canta

a ignorância em todas

as gramáticas do mundo

 

que não quer nem sabe

e vai por onde vai

 

e quando me perguntam

que género de Deus é este

eu apenas posso dizer

 

sei de um pássaro

hei de morrer

para que tu saibas

quem fui

 

e que nos teus olhos

caminhei

porque tu eras

água

 

e eu o peixe

sexta-feira, 23 de julho de 2021

um dia perguntaram-lhe

sobre o que é a tua poesia?

 

como ele não sabia

ocorreu-lhe dizer

 

é sobre a chuva

desde há muito

que a ignorância me comove

 

e finjo que não te vejo

baixando devagar

sobre a nossa nespereira

 

tu também me olhas

e fazes de conta que não me vês

 

e então cantas

 

cantas

como se cada hora

fosse um verão sem feridas

e depois vagueias pelas outras árvores

 

e fazes com que seja noite

 

e louvo-te em toda a minha ignorância

louvo-te quando te encontro de manhã

e vejo que não te foste

 

e então te peço

fica comigo

 

que é quando fazes de conta

que não estou

quinta-feira, 22 de julho de 2021

ele subiu a uma árvore

para avistar o mundo

 

mas apenas constatou

que por onde quer que vá

ou suba

 

a sua ignorância estará sempre

muito para além

 

do horizonte

                           (oração)


esta manhã vi um gafanhoto

no meu quintal

 

não se movia

 

apenas o dia ardendo

muito azul

 

por ele entrava


quarta-feira, 21 de julho de 2021

era verdade

e não se via

 

era como um segredo

 

uma mão

que se abria ou fechava

e onde tudo acontecia

 

às vezes

em certas noites

e diante do mar e seus vestígios

as crianças perguntavam

mas os adultos não sabiam

 

era um segredo

 

e de uns

para os outros seguia

e nunca se mostrava

 

não tinha nomes

nem nada dentro

 

era apenas e quando

terça-feira, 20 de julho de 2021

                   (o meu filho pablo)


há dias enterrou um tesouro

no quintal

 

dois rebuçados uma moeda

dois pequenos cordéis

e uma carta de jogar

 

depois estimou o tempo

o chuvoso inverno

o frio

a terra e as plantas

 

observou de perto

a nespereira

e vigiou os gatos

 

dos ventos

considerou a inclinação

 

por fim

sentou-se e abriu as mãos


aqui perto

 

é onde começa o amor

e tudo o que em silêncio

não digo

 

não digo

 

para que nunca

se apague

 


segunda-feira, 19 de julho de 2021

também me disseram

que todos os poemas

buscam o silêncio

 

dá-lhe antes

o outro nome

domingo, 18 de julho de 2021

toca cada um

dos teus amigos

 

cria neles as raízes

com que se fazem milagres

 

pois nada

pode comparar-se

ao que se abre

 

em cada uma das feridas

 

a que deste um nome

sábado, 17 de julho de 2021

sê manso

não confies senão às flores

as tuas incertezas

 

sê bondoso

mesmo onde nada cresce

pois há vazios que

nem as plantas conhecem

 

sê compreensivo

para com os dias que tardam a passar

ou com as noites lentas e seus desertos

 

nada na vida está completo

 

tudo se faz e desfaz

à medida que passamos

 

quinta-feira, 15 de julho de 2021

temos nomes para tudo

 

o amor os gestos as coisas distraídas

os sapatos a maldade e o mau tempo

               

as crianças doentes

os animais que sofrem

as horas marcadas e as chegadas tardias

 

nomes para tipos de vida

e até para as várias formas

 

de morte

quarta-feira, 14 de julho de 2021

o amor é uma grande dor

que há no mundo

 

e vem das árvores e do outono

cresce entre os espinhos e as rosas

com pássaros fome gestos

 

e é uma dor muito grande

uma cadeira um banco

um dia

 

tanta coisa cabe nesta dor

 

até mesmo a alegria

terça-feira, 13 de julho de 2021

porque estás acima do mundo

 

das misérias e dos muros

e de tudo aquilo que me prende e dói

 

e acima do mundo

quando olho alguma coisa

nos teus olhos

 

e me parece que tudo

é tão grande

 

que nas tuas mãos deixo o cansaço

e as feridas que trago da cidade

 

o que chamam realidade

os papéis os compromissos

as portas e as datas

 

e sigo então as asas das gaivotas

que me dizem

 

que só tu estás

acima do próprio mundo

 

segunda-feira, 12 de julho de 2021

às vezes imagino

 

alguém no mundo

que acorda de manhã cedo

 

e vai a caminhar até onde

nunca mais se veja

 

e que alguém há de abrir uma janela

ou fechar uma porta

como se acenasse

 

e talvez

haja sempre uma criança

a fazer desenhos engraçados

a que poderá chamar

 

pessoa pássaro sol

domingo, 11 de julho de 2021

senhor

 

eu sou digno

de tudo o que de bom

me aconteceu

 

e mereço

em medida igual

o que de mau

em ambas as mãos

recebi

 

e se a árvore não tinha frutos

não me julgues

 

se a distância era longa

tu foste a parte ausente

 

se a minha voz

em lugar algum te alcança

 

não me escrevas tu

mais cartas

sem endereço

         Vai. E por onde quer que vás

leva contigo a canção.

Afaga-a dentro de ti

porque ela é tua

e alumia o teu caminho

mesmo quando a noite se torna escura

e tu perdido.

 

Guarda-a no teu peito como uma flor,

mas nunca a queiras só para ti: reparte-a

para que os teus amigos se tornem

mais belos e mais perfeitos:

 

que a vida é única

e por dentro há uma música qualquer

que nos atrai.

disseram-lhe

que nunca os gatos falam

 

e então ele disse

que falam mais

que muitos homens

 

que não conhecem

dos gatos as dores

 

nem da chuva

o amor das pequenas

coisas

 

esses que dizem

 

e não sabem dos olhos

de uma criança

no seu gato

sábado, 10 de julho de 2021

experimenta acreditar

que isto é mais que outra coisa

 

e dá um nome

a tudo o que vale a pena

 

são muitas ainda que

às vezes te parecem poucas

 

podem elas ser do domínio

do que não está

ou pode acontecer

que não as vejas

 

outras és tu

que não queres

 

pois demasiadas vezes

escolhes aparências fáceis

sexta-feira, 9 de julho de 2021

               muita gente tem alguma coisa importante em sua vida. por ela cresce e por ela se transforma. podem ser os filhos, os netos, os amigos. há quem reze esperando um lugar feliz depois da morte. há pessoas que ambicionam coisas simples, como o sossego, uma noite de chuva com silêncio, ou a sombra de uma árvore. há também aquelas, bem as vejo, que assomam de uma janela, para tudo aquilo em que não tocam. há quem tenha um livro aberto numa página que nunca mais foi fechada. aí ficou, como se o livro, mais que palavras, seja uma outra coisa que não sabe, mas onde vê, mais que um pensamento ou um mar, mais que a vida ou o mundo, tudo aquilo em que a sua própria existência não cabe. são os poemas.