poesia, Carlos Lopes Pires

terça-feira, 29 de junho de 2021

hoje é terça-feira

no mundo

 

e é tarde

no meu coração

 

e são as flores

e os pássaros

 

que me trazem

a tua mão

 

segunda-feira, 28 de junho de 2021

                         prece


toca-me

e bastará o gesto

 

diz-me

e ficarei calado

 

mostra-me

e tudo esquecerei

 

morre-me

 

para que a dança

comece


domingo, 27 de junho de 2021

a minha mãe

quis ensinar-me tudo

 

o pai-nosso e a ave-maria

 

e antes disso as palavras

que nos ajudam a fazer o mundo

 

e um dia trouxe-me Deus

com maçãs à mistura

 

e uma dor muito grande

que era mais que uma estrada

de onde se via o mar

 

foi dessa janela que soube

que tudo o que era

era por dentro

 

nem sabedoria

nem milagre

 

apenas dentro


sexta-feira, 25 de junho de 2021

eu sei mãe

que não querias

que envelhecesse

 

e por isso

me conservaste sempre menino

nos teus olhos verdes

 

e quando na hora da tua morte

te dei uma mão cheia de balões

 

eu sei que o teu aperto

era uma dor

 

sem nome

plantei uma árvore

no quintal

 

e vieram pássaros

 

desenhei uma noite

na parte de cima do azul

 

e vieram estrelas

 

então

desenhei uma rosa

 

e eras tu

 

segunda-feira, 21 de junho de 2021

                            poema para elis, hoje nascida


poderia haver uma estrela

ainda sem o teu nome

 

um lugar que não fosse

conhecido dos homens

 

ou uma árvore cujos frutos

fossem diferentes

em cada mão

 

laranjas maçãs nêsperas


domingo, 20 de junho de 2021

crucificado sejas

no dia de cada um

 

em cada aldeia e lugar

e na sombra das igrejas

 

crucificado

na nossa memória curta

e por nossa salvação

 

embora nenhum de nós

realmente te reconheça

 

e crucificado por isto

e por aquilo

 

por uma coisa ou outra

que todas as rosas servem

para odiar o próximo

 

tão estrangeiro foste e és

dentro de nós

os homens são animais

sem remédio

 

constroem estradas

que levam aos lugares

dos confins

 

mas não encontram

um único caminho

 

viajam até às estrelas

mas não olham a estrela

que há nas suas mãos

 

querem ser eternos

em vida

 

mas não compreendem

na morte

a própria vida

sexta-feira, 18 de junho de 2021

quando lhe disseram que os seus poemas não são literatura/ nem se coadunam com as linhas da renovada poesia moderna// ele respirou de alívio/ encostou-se ao pessegueiro do quintal e sorriu para algumas abelhas/ que por ali andavam// juntou nas mãos um pouco de chuva da noite anterior/ e em duas abriu as mãos/ para que não se fizesse ainda tarde/ nos dois lados do mundo/ que eram um só no seu coração// e foi então que alguém lhe disse/ que também não há pessegueiros no seu quintal// mas como pode isso ser verdade/ se no meu quintal nunca me falta nada

quinta-feira, 17 de junho de 2021

há quem só acredite

em grandes milagres

 

eu creio nos pequenos

milagres do meu quintal

 

como quando um pássaro

regressa ao ninho

 

e chove

por entre as rosas

quarta-feira, 16 de junho de 2021

longe daqui

há uma guerra

de que ainda não sei o nome

 

passa-se num país

sem laranjas

 

é onde não há crianças

e chamam pássaros

às suas sombras

 

não há mães nem pais

 

foi por veredas sem fim

que se foram

e já não os deixam voltar

 

e para onde foram as flores

 

em seu lugar agora

é onde crescem trincheiras

terça-feira, 15 de junho de 2021

                               1.

 

um dia perguntaram ao poeta

como pode distinguir-se

um poema duma prosa

 

é fácil

disse ele

 

só nos poemas chove

 

2.

 

alguns não ficaram satisfeitos

e insistiram

 

então ele explicou

 

se é poema chove

 

se é prosa

poderá ter aguaceiros

segunda-feira, 14 de junho de 2021

como não havia luz

 

fui falar

ao vaga-lume

 

imagem de Deus

seu semelhante

 

e pedi-lhe

 

um lugar para ti

no mundo

quando te olhas no espelho

nunca é a ti que vês

 

e se tocas o teu rosto

não é a mesma mão

no mesmo rosto

 

moves-te

em caminhos e lugares

e por todos vais ficando

 

na grande solidão

do mundo

domingo, 13 de junho de 2021

abri uma ferida

e dei-lhe o teu nome

 

depois gravei-o

dentro de uma laranja

 

para que

nunca possas

estar longe de mim

segunda-feira, 7 de junho de 2021

no tempo em que tinha

um gato

 

desconhecia haver uma dor

com esse nome

 

porque o nome

não era o que se movia fora

 

mas o que havia

dentro

quinta-feira, 3 de junho de 2021

todos chegamos

de algum lado

 

e fazemos perguntas

aos que estão

 

e fazemos do que somos

o outro lado que já se foi

 

eu sei

às vezes juntamo-nos

lá fora

uns e outros

 

para que nunca

se faça tarde no coração