poesia, Carlos Lopes Pires

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Ainda de algures na década de 90 do século passado, um poema jamais publicado.
           
                         Bolotas
  
Nunca esperei ver tanto nojo na minha vida.
As correrias que se fazem ao longo
dos corredores, as bolotas,
 
a lavadura servida em pratos finos,
os porcos e os abutres infestando as salas de reuniões,
as explicações, a boca cheia de gordura e ossos,
as mãos nos bolsos, o cabelo impecavelmente penteado,
as preocupações, 
esse incómodo que é haver pessoas
capazes de sofrer e que persistem e teimam,
não obstante as principais linhas
da política internacional,

tenho passado os últimos dias
com náuseas.

 

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Do distante ano 1992, um poema nunca publicado.


             Acuso-te

A ti acuso,
e a quantos te acompanham,

de todos os crimes cometidos
e dos ainda guardados e por fazer.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Hoje venho aqui recordar o poeta José Carlos Gonzalez, querido amigo falecido em Kerlaz (Bretanha) há quase 20 anos. Poema de um livro, que lhe dediquei, chamado "Novos poemas da Bretanha seguidos de Kerladágio" (1999).


A insónia do poeta

É quase inverno na Bretanha.

As florestas enchem-se de sombras
e pássaros. Alimentam-se os peixes
no coração das rias. O vento percorre
o espírito das árvores,
ensufla as velas dos barcos ao largo.

A gata respira o silêncio
onde se escondem os ratos do campo.

A noite cai sobre Kerlaz.
Tudo sossega, tudo dorme.

Só o poeta persiste
na sua insónia do mundo.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

               Poesia (do mesmo livro, em resposta a António Nunes)

Essa flor tantas vezes nomeada em vão,

casa, esquina, portal e rua,
segredo escondido nos teus olhos
tão de ervas e brancura,
aí, onde nada fecha nem cerca
o coração,
o coração deste homem,
o teu, o dele,

sem nada mais que seu,
pequeno, mortal,
juntando ossos, galhos,
água e barro modelando o verme,
o insecto, o voo
desta criatura cega e muda
na procura da verdade aberta a
todos os caminhos,
a verdade ignorada que

as suas mãos buscam
nessa flor tantas vezes nomeada

em vão.
                         (In Em cada um, 2001)

Começo

 
Vi como tudo começou na terra dos homens.

O ar, o frio, o músculo, o longo braço das manhãs
em busca da claridade.
Vi o tempo expandir-se
no uivo do lobo e na manha da raposa.
Vi o apego da formiga na dureza da madeira.
Vi como a criatura dominou a terra,
porque é na água que tudo começa.
Vi como as coisas prosseguiram
em desenhos circulares nas rochas,
e a forma que depois tomaram,
atravessando as clareiras da floresta
em direcção aos rios.
Vi que o mundo estava frio:
o frio sobre a mesa,
o frio sobre a porta de entrada.
Vi o frio transformar-se em canções.
Vi como o olhar do melro
pesou sobre o silêncio dos telhados,
e como a chuva tem origem em certas estações.

Nada mais havia, e vi que o mundo formou as suas cinzas
a partir das areias e dos peixes que há nos lagos.
Vi alguns homens de joelhos, fazendo estranhas orações.
Vi, então, que os homens têm olhos animais
e abismos no coração.
E vi que este é o princípio de toda a dor.

Vi que tudo começa no coração dos homens.

                                     (Em cada um, 2001)