poesia, Carlos Lopes Pires

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

                              aos amigos


 

hei de deitar-me

a teu lado

para que nunca te vás

da minha vida

 

assim

como quem morre

pela primeira vez

 

e ainda não conhece

a chuva

 

nem das rosas

o abandono


quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

nunca chegamos

a saber grande coisa

sobre a vida

 

há sempre a suspeita

de algo a caminho

 

uma queda

um azar

 

um imprevisto

que por dentro

seja

 

o fim do mundo

terça-feira, 9 de novembro de 2021

sábado, 6 de novembro de 2021

esta manhã

 

vi Deus

passear entre as árvores

do meu quintal

 

antes de ir-se

bateu as asas

e as rosas floriram

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

no meu quintal                      

 

há um vaga-lume

com o teu nome

 

é para que estejas

sempre comigo

terça-feira, 5 de outubro de 2021

esta é a luz

das grandes coisas

 

indivisível no tamanho

inalcançável na distância

 

a ferida

que abre o mundo

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

aquele que busquei

nos dias de chuva

 

aquele que trazia

o meu nome numa rosa

 

aquele que era o mundo

onde quer que fosse

 

o dono

do pessegueiro


sábado, 4 de setembro de 2021

disseram-me

 

que escrevo demasiados poemas

sobre o quintal

 

mas os meus poemas

são coisas agrícolas

 

como o pôr do sol

ou as formigas

 

e também é verdade

que chove nos meus poemas

 

e há tardes

de um verão antigo

em que me sento junto às árvores

e respiro

 

tudo é novidade

aqui

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

os meus poemas

não tratam de coisas importantes

 

apenas falam de chuva

 

não sobre a sua natureza

ou por que chove

 

mas porque chuva

é o que vem nos poemas


                          (a minha poesia é uma ignorância, 2017)

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

senhor

 

serei breve e pouco

e mais não direi

 

sobre um mundo

que não quero

 

e sei-te inocente

desta culpa tão profunda

que somos nós

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

nada poderá salvar-te

de ti próprio


nem mesmo os plátanos

junto aos rios



                        (o caminho da água, 2024)

domingo, 8 de agosto de 2021

liberta-me

disse o pássaro

 

para que voes

tu também

 

que nenhum coração

é livre

 

na prisão de outro



                      (azedas e margaridas, 2023)

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

se um dia

te perguntarem

tu responde

 

não deixes

que nos teus olhos

se percam os espelhos

 

tu responde

para que as tuas mãos

se tornem abundantes

 

para que

sigam os peixes



                    ("as rosas impossíveis", 2022)

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

se for tua vontade

 

que a palavra seja dita

na luz da manhã

inatingível

 

e de bruços ele se erga para o mar

se essa for a tua vontade

 

e se por tua vontade

as amoras de agosto

couberem neste cesto

 

e assim esta voz

se cale para sempre

 

na palavra da manhã



                 (a minha poesia é uma ignorância, 2017)

 

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

gostava de ser claro contigo

 

a mim há muita coisa

que falta e dói

 

muitas não cabem

em palavras

e é por isso

que são poemas

 

e são tantas e às vezes

 

nas casas nas ruas

na chuva dos quintais

e nas árvores

 

que dou comigo

e nas maçãs

 

que há no chão



                        (onde as maçãs crescem, 2020)

terça-feira, 3 de agosto de 2021

ali vivemos

por um tempo

 

um luar em agosto

 

uma inclinação das sombras

a meio da tarde

 

as coisas que as nossas mãos

transportavam

 

a sacola ao ombro

nas manhãs de abril

 

e nós perdidos entre

as casas e a chuva

 

e depois

de regresso às árvores

e aos pássaros

 

às noites dos grilos

e ao prodígio dos vaga-lumes



                   (azedas e margaridas, 2023)

domingo, 1 de agosto de 2021

que nada se apague

nas janelas embaciadas

 

nem as cinzas às cinzas

tornem o que nunca

lhes foi dado

 

a alegria das crianças

 

o amor desesperado

em mãos tão apertadas

 

que as rosas e os filhos

sejam poupados



                      (onde crescem as maçãs, 2020)

sábado, 31 de julho de 2021

há poetas que escrevem

para a literatura

 

eu escrevo para estar

contigo

 

para que mesmo depois

da minha ausência

 

fique uma dádiva

de abundância



                     (a noite que nenhuma mão alcança, 2020)

falta-me sempre distância

 

quando tento explicar

que a minha poesia

é uma questão de ausência

 

e não me falem de literatura

 

falem-me antes de um homem

que teve um gato

e dos seus poemas tristes

 

porque a tristeza

é um dom da abundância

 

e foi criada

ao terceiro dia

para que nunca estejas só

 

e tem desenhos na areia

tem feridas abertas nas mãos

 

uma coisa que dói

no coração da madeira



                        (onde crescem as maçãs, 2020)

hoje

venho falar-te de abundância

e abro-te as mãos

abraço-te

 

multiplico a água

por muitas vezes pássaros

 

e vou por onde vou

com os pés as mãos

os olhos

 

que tudo me guia até ti

 

e transporto-me em abundância

ao teu coração

 

semeio

e movo as sementeiras

 

para que me digas

para que me fales

 

para que me tenhas

sempre contigo



                       (onde as maçãs crescem, 2020)

sexta-feira, 30 de julho de 2021

como não sei

o que é o amor

fui perguntar a um pássaro

 

e perguntei-lhe porque voa

e que espécie de ar

o sustenta

o quê

 

porque realmente

não sei o que é o amor

não sei

 

e o pássaro

que possui o prodígio

dos impossíveis

 

pousou

no meu coração



                   (se houver domingo à tarde, Set. 2021)

plantei uma árvore

no quintal

 

e vieram pássaros

 

desenhei uma noite

na parte de cima do azul

 

e vieram estrelas

 

então

desenhei uma rosa

 

e eras tu

terça-feira, 27 de julho de 2021

foi-lhe dito por uma voz

que parecia vir

do céu

 

foi-lhe dito

 

foi-lhe dito

que eras tu

 

e acreditou



                     (se houver domingo à tarde, Set 2021)

voa pássaro

voa

 

leva dias bonitos

aos meus amigos

 

azuis

cinzentos

ou mesmo

que de chuva sejam

 

e sempre esses dias



                       (se houver domingo à tarde, Set. 2021)

todas as manhãs se levantam

e caminham para a morte

 

e das mãos erguem casas

desenham cores lápis algodão

 

abraçam os filhos e os retratos

olham o reflexo das lágrimas

que deixam pelo chão

 

e depois vão pelas tardes distraídos

misturam-se com as aves

evitam a chuva e os dias frios

 

mas morrem por todo o lado

 

ou então chegam tarde e à noite

e abraçam os filhos

 

inventam alegrias e palhaços

para que a vida não pareça

 

tão estreita



                 (a noite que nenhuma mão alcança, 2018)

                                                         senhor

 

faz dos meus poemas

as palavras que te faltem

 

e neles não ausentes a dor

que faz de uma vida

o que ela é

 

e não os divulgues nem acrescentes

 

deles faz

o que ontem de manhã choveu

 

pois tudo o que houve

                                                                            foi tanto e era teu


                                                                                           (a noite que nenhuma mão alcança, 2018)

os que precisam invocar-me

 

não sabem

sobre o prodígio da inexistência

 

a mão fechada

não é a que dá abundância


                    (onde as maçãs crescem, 2020)

segunda-feira, 26 de julho de 2021

talvez um dia as árvores

se lembrem de nós

 

de quando os nossos nomes

tinham rostos

 

e nós então

tão perto

de tudo o que tocámos



                    (aquele que não ouvirás mais, 2019)

domingo, 25 de julho de 2021

há dias disseram-me

que não há nada de útil

na minha poesia

 

e eu concordei

 

todos os dias

a limpo de utilidades

e outras coisas

 

demais


                       (a minha poesia é uma ignorância, 2017)

hoje encontrei Deus

pousado na nossa nespereira

 

ele não faz milagres

ou coisas difíceis de acontecer

 

ele não ordena chuva

e chove

 

nem que as árvores tenham sombra

ou que a luz brilhe na água

 

por vezes

encho o meu coração

de mais e mais ignorância

 

e vou então junto dele

e digo-lhe baixinho ao ouvido

 

sei que és tu

sábado, 24 de julho de 2021

muitos escrevem a um deus

cheio de letras grandes

com intervalos de importância

 

eu dirijo-me a um Deus

que não quer existir-se

para além da nespereira

do meu quintal

 

que louva e canta

a ignorância em todas

as gramáticas do mundo

 

que não quer nem sabe

e vai por onde vai

 

e quando me perguntam

que género de Deus é este

eu apenas posso dizer

 

sei de um pássaro

hei de morrer

para que tu saibas

quem fui

 

e que nos teus olhos

caminhei

porque tu eras

água

 

e eu o peixe

sexta-feira, 23 de julho de 2021

um dia perguntaram-lhe

sobre o que é a tua poesia?

 

como ele não sabia

ocorreu-lhe dizer

 

é sobre a chuva

desde há muito

que a ignorância me comove

 

e finjo que não te vejo

baixando devagar

sobre a nossa nespereira

 

tu também me olhas

e fazes de conta que não me vês

 

e então cantas

 

cantas

como se cada hora

fosse um verão sem feridas

e depois vagueias pelas outras árvores

 

e fazes com que seja noite

 

e louvo-te em toda a minha ignorância

louvo-te quando te encontro de manhã

e vejo que não te foste

 

e então te peço

fica comigo

 

que é quando fazes de conta

que não estou

quinta-feira, 22 de julho de 2021

ele subiu a uma árvore

para avistar o mundo

 

mas apenas constatou

que por onde quer que vá

ou suba

 

a sua ignorância estará sempre

muito para além

 

do horizonte

                           (oração)


esta manhã vi um gafanhoto

no meu quintal

 

não se movia

 

apenas o dia ardendo

muito azul

 

por ele entrava