aos amigos
hei de deitar-me
a teu lado
para que nunca te vás
da minha vida
assim
como quem morre
pela primeira vez
e ainda não conhece
a chuva
nem das rosas
o abandono
não posso pedir-te que venhas comigo. nem posso pedir-te que vejas o mesmo que eu vejo. cada qual transporta a si mesmo. também não posso pedir-te que saibas do que eu sei e que todos os dias me acontece desde há muito. repara: estou cego e um cego não pode pedir aos outros que vejam o que ele mesmo não sabe que vê.
ali vivemos
por
um tempo
um
luar em agosto
uma
inclinação das sombras
a
meio da tarde
as
coisas que as nossas mãos
transportavam
a
sacola ao ombro
nas
manhãs de abril
e
nós perdidos entre
as
casas e a chuva
e
depois
de
regresso às árvores
e
aos pássaros
às
noites dos grilos
e
ao prodígio dos vaga-lumes
(azedas e margaridas, 2023)
falta-me sempre distância
quando
tento explicar
que a minha
poesia
é uma
questão de ausência
e não me
falem de literatura
falem-me
antes de um homem
que teve
um gato
e dos seus
poemas tristes
porque a
tristeza
é um dom
da abundância
e foi
criada
ao
terceiro dia
para que
nunca estejas só
e tem
desenhos na areia
tem
feridas abertas nas mãos
uma coisa
que dói
no coração
da madeira
(onde crescem as maçãs, 2020)
hoje
venho
falar-te de abundância
e abro-te
as mãos
abraço-te
multiplico
a água
por muitas
vezes pássaros
e vou por
onde vou
com os pés
as mãos
os olhos
que tudo
me guia até ti
e transporto-me
em abundância
ao teu
coração
semeio
e movo as
sementeiras
para que
me digas
para que
me fales
para que
me tenhas
sempre
contigo
(onde as maçãs crescem, 2020)
todas as manhãs se levantam
e caminham para a morte
e das mãos erguem casas
desenham cores lápis algodão
abraçam os filhos e os retratos
olham o reflexo das lágrimas
que deixam pelo chão
e depois vão pelas tardes distraídos
misturam-se com as aves
evitam a chuva e os dias frios
mas morrem por todo o lado
ou então chegam tarde e à noite
e abraçam os filhos
inventam alegrias e palhaços
para que a vida não pareça
tão estreita
(a noite que nenhuma mão alcança, 2018)
hoje encontrei Deus
pousado na nossa nespereira
ele não faz milagres
ou coisas difíceis de acontecer
ele não ordena chuva
e chove
nem que as árvores tenham sombra
ou que a luz brilhe na água
por vezes
encho o meu coração
de mais e mais ignorância
e vou então junto dele
e digo-lhe baixinho ao ouvido
sei que és tu
muitos escrevem a um deus
cheio de letras grandes
com intervalos de importância
eu dirijo-me a um Deus
que não quer existir-se
para além da nespereira
do meu quintal
que louva e canta
a ignorância em todas
as gramáticas do mundo
que não quer nem sabe
e vai por onde vai
e quando me perguntam
que género de Deus é este
eu apenas posso dizer
sei de um pássaro
desde há muito
que a ignorância me comove
e finjo que não te vejo
baixando devagar
sobre a nossa nespereira
tu também me olhas
e fazes de conta que não me vês
e então cantas
cantas
como se cada hora
fosse um verão sem feridas
e depois vagueias pelas outras árvores
e fazes com que seja noite
e louvo-te em toda a minha ignorância
louvo-te quando te encontro de manhã
e vejo que não te foste
e então te peço
fica comigo
que é quando fazes de conta
que não estou