poesia, Carlos Lopes Pires

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

sábado, 23 de fevereiro de 2019

sei de um homem que tinha um gato
e sei do seu desgosto

conheci-o
quando ele ainda não tinha
palavras  para essa dor

e um dia sentou-se no frio
com a noite inteira nas mãos
porque o gato não veio
dessa espera

e vi-o depois calar-se
não porque já não lembrasse

mas porque silêncio
é a palavra que mais dói

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019


é um azul tão longe
 
esse país onde dizem
que as árvores dão frutos
do tamanho da água
 
cidades luminosas
onde cabem todos
os que não têm lugar aqui
 
e por essa sorte fomos
em barcos
de suor e miséria
 
e nela cavámos
uma ferida aberta
 
no coração

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

vi amigos desentenderem-se
e pensei como isso é triste

como é triste
termos uma só vida
para passos e mãos
que se afastam tanto

não termos
mais que uma janela
e nós lá fora
como vultos na paisagem

sim é triste e é pena

darmos nomes
e não sabermos nada
do que está lá dentro

e sofrermos cada um
por seu lado

mas nunca no coração
do outro

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

                       prece

ó Deus
dá-me a medida
de tudo o que é silêncio
e em silêncio é
 
a chuva de todos os dias
e os vultos nas paisagens
 
uma vida azul
e simples

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019


não sei esquecer-te

constato-o em cada dia
quando digo os nomes
do livro das minhas faltas

uma longa e funda ferida
de onde vejo o mar
numa paisagem repetida
e sem barcos

agora é uma viagem
num caminho onde já não estás
um verbo para uma palavra
tão inútil

não obstante o coração dizer-me
uma e outra vez

que nunca de lá saíste

                   (para Ana e Fulvio)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

era tão azul

https://www.youtube.com/watch?v=4_yIPYhO-y0
porque estás acima do mundo

das misérias e dos muros
e de tudo aquilo que me prende e dói

e acima do mundo
quando olho alguma coisa
nos teus olhos

e me parece que tudo
é tão grande

que nas tuas mãos deixo o cansaço
e as feridas que trago da cidade

o que chamam realidade
os papéis os compromissos
as portas e as datas
e sigo então as asas das gaivotas
que me dizem

que só tu estás
acima do próprio mundo

                                   (In a noite que nenhuma mão alcança, 2018)


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

                 
em silêncio nas maçãs

em silêncio nas mãos
junto ao coração

e em silêncio as mãos
que abro para ti

                     (para o Orlando)
 
            último poema
 
a meio da tarde
numa cidade
 
um homem parou
entre as coisas que trazia
 
esvaziou-se de tudo
 
ignorou as janelas
o vento a chuva
 
ajoelhou-se
contra o tempo
as paredes e os carros
 
e erguendo as suas mãos
o mais que pôde
 
tornou-se Deus
                         (In a minha poesia é uma ignorância, 2017)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

ontem foi
outra vez domingo
e não vieste

se houvesse uma dor
para este nome

seria a palavra certa
para tudo
o que não voltou

                   (In onde só as maçãs crescem, 2020?)

sábado, 2 de fevereiro de 2019


Esses amigos

Eu conheço os homens pelos olhos,
pelo modo como trazem dentro
o seu pedaço de humanidade.

Sei quando um homem ergue a sua
mão direita para a árvore mais alta,
e quando o seu coração anseia
parecer-se com o mundo.

Eu não meço os homens
segundo as suas crenças: o importante
é o lugar onde cada um guarda a sua miséria,

e quando uma certa pobreza pousa no andar,
como uma luz que nada sabe,
eu sei que importante não é o que se tem,
mas o tamanho da recusa.

Eu não aprecio os homens
pelo que dizem ou fazem,
mas pelo abismo que deixam em nós
quando passam. Alguns homens são como janelas
por onde olhamos sem jamais conseguirmos encher
o nosso olhar. Outros são leves e transparentes
e percorrem os jardins da nossa vida
até que um dia não regressam.

Todos temos na nossa vida alguém que um dia
não voltou. Alguém que antes de partir
nos disse até logo levando a mão direita ao coração
e depois cruzou a porta para uma dor sem fundo.

Tão pouco admiro nos homens o domínio da certeza.
Nos animais e nas coisas
admiro antes a evidência do silêncio
e as feridas das ausências.

Sei que tudo um dia se quebra,
porque sei que tudo o que existe é frágil
e caminha para dentro. Às vezes olho o que há de mim
nos outros e compreendo que todos somos
dias de mar junto à praia, olhares de passagem pela água.

Por isso,
mais do que a força ou a coragem
nos homens admiro a nobreza na queda
e a humildade na subida.

Olhando as estrelas, que jamais alcançam,
eu conheço o olhar desses homens
que têm passado por mim. Os seus gestos amigáveis,
as palavras generosas e ternas,
as mãos que nunca sabem fechar-se
senão para abrir-se mais e sempre mais.

Eles respiram e amam com franqueza,
às vezes parecem pedras, mas são como as flores,
às vezes não os vemos,
mas é porque estão mesmo a nosso lado.

Na minha vida conheci alguns desses homens
que frequentam os lugares onde as rosas crescem.
Alguns caminharam a meu lado. Outros dão-me a sua
mão amiga sempre que preciso
e nunca por nunca se esquecem de mim.
São os meus amigos: esses amigos.

Observo-os
e um dia espero parecer-me com eles.

                                            (poema impublicado)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019