poesia, Carlos Lopes Pires

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

 oração para um dia de inverno


há quem julgue

que sabe quase tudo

sobre o mundo

 

eu sei quase nada

sobre o chão

 

há quem viaje muito

e para lugares tão longe

 

eu faço estrelas

no chão

 

também

há quem saiba

quase tudo sobre Deus

 

eu faço desenhos dele

no coração

 

há quem só queira

ir morar no céu

 

eu já plantei as rosas

e ajoelhei no chão


domingo, 30 de outubro de 2022

um amigo disse-me

que num charco

é impossível haver barcos

 

mas eu

que sou filho da infância

digo que mais difícil

 

é haver paz

lá fora

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

um rouxinol

atravessa ferido

a espessura da tarde


passa pelas árvores

 

sangra no coração

das ervas e dos insectos

 

transporta uma ferida

no coração

 

inaugura na noite

dos seus olhos

uma canção


quarta-feira, 12 de outubro de 2022

tem compaixão de nós

senhor

 

que somos animais aflitos

e sem regresso

 

e construímos erguemos

fazemos

 

mas por dentro somos

vazios e desertos

terça-feira, 11 de outubro de 2022

a minha casa

é de ver noites

 

por isso

tem uma estrela

lá no cimo

de onde se vê

a fábrica do longe

 

a minha casa

abre-se de dia

e vê-se através dela

o sol

 

olha

 

vê-se através dela

o sol que trazes

 

nas tuas mãos

há poetas que escrevem

para a literatura

 

eu escrevo para estar

contigo

 

para que mesmo depois

da minha ausência

 

fique uma dádiva

de abundância

senhor

 

estão a acabar-se as canções

e nada me dizes

sobre as rosas

 

já perdi avós pais

alguns tios e amigos

 

os meus filhos

em breve ficarão sós

 

e nada me dizes

sobre as rosas

sábado, 8 de outubro de 2022

hoje entreguei

o meu coração ao sol

e passeei na chuva

 

hoje cresci numa planta

até tornar-me água

e uma gota caí

até ser mar

 

hoje respirei uma estrela

até á noite

 

em mim

nada se desfaz

o pablo chegou

ao pé de mim

e disse

 

toma

é um poema

 

na tua mão fechada

perguntei

 

sim

terás de abri-la

 

e abriu-se numa rosa

o mundo

certa vez

perguntaram a um poeta

 

se Deus existe

onde está

 

o poeta abriu as mãos

e assim ficou em silêncio

 

como pode ser que Deus

se encontre nesse vazio

perguntou alguém

 

e então o poeta disse

 

em que outro lugar

poderia estar

Deus não pára

de surpreender-se

com os prodígios do mundo

 

o domínio no ar das gaivotas

a formação das ondas do mar

na respiração dos peixes

 

ou as crianças que passeiam

em jogos e areia

 

mas o que mais o surpreende

 

é não deixar marcas

quando caminha

junto ao mar

hoje vim morrer contigo

junto às tuas flores

 

e ajoelho-me no silêncio

que te cerca

 

sou o homem do gato

 

o poeta que vive

no lado de dentro

 

dos poemas

 que a verdade seja dita

 

que ele nunca conheceu Deus

nem com ele esteve

 

era apenas uma canção

num dia de chuva

 

uma paisagem difusa

onde nada se via

 

era um equívoco

uma lua cheia lá em cima

 

uma coisa que havia

no coração

 

era uma ausência

que todos os dias

 

se abria em cada mão

 


 

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

                                      na lagoa da foz do arelho


hoje vim morar

na lagoa

 

sou um barco

um peixe

 

um brilho de luz

na água

das marés

 

movo-me infinito


sento-me contigo

a escutar as tuas orações

nos dias sempre iguais

 

os degraus que desces até ao rio

onde tudo passa

 

as lembranças feitas de frágeis tábuas e rosas

os gestos que prolongam

movimentos inúteis

 

as palavras com que todos os livros acabam:

 

ide em paz

e o senhor vos acompanhe

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

diz-lhes

que não me conheces

 

que sou para ti

uma mão aberta

onde nenhuma outra

te pode encontrar

 

e podes talvez

dizer-lhes

por que envelheci

 

que não encontrei um corpo

onde pousar este

coração

mas se foste tu

quem tudo fez

 

incluindo a luz

e a sombra que todos

os animais carregam

 

em que parte

da tua criação

 

se abriram

as minhas mãos

                               (do verão)


não

 

não era um anjo

do senhor

através da janela aberta

abrindo as mãos

abrindo as asas

 

era uma melga

uma luz da rua

 

ou talvez calor


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

o que amas

falará por ti

 

então

entrega-te com apego


como se fosses uma árvore

ou um lugar muito antigo

e secreto

 

e já que

em breve serás

múltiplo do longe

 

ama o que agora

te parece perto

terça-feira, 4 de outubro de 2022

              (espécie de auto retrato)

nunca teve olhos

senão para longe

 

vida de peixe

em coração de homem

 

o tanto que lhe ficou

por dizer ao seu gato

 

as demasiadas faltas

com os filhos

 

que tudo passou

quase rápido

 

tudo desarrumado

e à pressa

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

sou a mão

 

mas sou igualmente

a tua sombra

 

pode dizer-se

que venho morar

contigo

 

alcançar-te onde

não possas ver-me

 

pois nenhum coração

vive sozinho

hoje é verão

 

disse-me um anjo

segurando o sol

numa mão

 

também há chuva

no verão

 

perguntei

 

e o anjo abriu

a outra mão

domingo, 2 de outubro de 2022

senhor

faz-me pobre

em palavras e arranjos

 

e de entre

todos os nomes

o que nenhuma palavra

tenha

 

e dá-me o dom

de alcançar-te

no coração

 

como um gato

um pássaro

ou um animal que passa

 

e consigo leva apenas

a tua sombra

aqueles

que são comigo

nem sempre são

os que me ouvem

 

comigo estiveram

sempre e mais

os que me subiram

na cruz

 

esses

que vieram das ruas

e através das casas

 

e cuspiram

até morte

sábado, 1 de outubro de 2022

eu cresci

a brincar com longe

 

nos insectos nas ervas

e na lua

 

longe e eu

fazíamos longes

de tudo

e mais alguma coisa

 

quando

me tornei poeta

quis mostrar aos outros

que longe

é múltiplo do perto

 

e assim

os meus filhos

são múltiplos de mim

até perder de vista

 

há também

a fábrica do tudo

 

mas hoje

não vou falar dela

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

sentei-me

e abri as mãos

para que viesses

 

e tu vieste

 

tu vens sempre

com o sol

ou através da chuva

 

depois fechei

os olhos

 

e fechei-os tanto

para que não te fosses

 

que desde há muito

já não te vais

 

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

se havia mar

não dei por ele

 

era talvez verão

 

ou outra coisa

que ainda não fosse tarde

 

setembro sobre os muros

o sol através das mãos

 

e a vida desprendia

um sossego muito antigo

 

era aí

que eu dormia

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

leva-me contigo

tristeza

 

pelos charcos silenciosos

das rãs

 

às mãos abertas

dos amigos

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

eu sei um verbo

de cantar com os pássaros

 

e conjugo o infinito

numa só gramática

 

e tenho uma tabuada

de cantar com os pássaros

 

eu multiplico

eu adiciono

 

mas nunca divido

ou subtraio

 

cantar com os pássaros

domingo, 21 de agosto de 2022

encosto a minha tristeza

a uma árvore

e dou-lhe um nome

 

por exemplo

estrela janela

gato

 

depois subo-a

e vejo por ela o mundo

 

é quando te recordo

mãe

 

e de quando me dizias

com carinho

 

estamos de passagem

filho

sábado, 20 de agosto de 2022

quando o pássaro

abandonou o seu corpo

 

não caminhou

por entre as flores

nem subiu ao céu

 

apenas um silêncio

na sua sombra

 

e uma ausência

sem fim