poesia, Carlos Lopes Pires

domingo, 31 de janeiro de 2021

ser forte neste tempo

em que tudo mata e dói

 

ser generoso apesar

do que foge e alcança

 

dar à gratidão um nome

que não baste para nomear

o quanto

 

saber que há janelas

que abrem para o que nunca

entenderás

 

e tão humilde

vendo a tua sombra envelhecer

diante da luz e das coisas

que te trazem

agora

 

estrelas água caminhos

sinais e animais do ar

 

e agora

abre os braços

e sossega

 

sábado, 30 de janeiro de 2021

                  epitáfio para o meu cunhado paco


hoje paco

ascendeu aos céus

 

mas Deus ainda

não sabe

 

e quando Deus

abrir a sua mão direita

 

paco estará quieto

no seu coração


sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

                 (imigrantes)


é um azul tão longe

 

esse país onde dizem

que as árvores dão frutos

do tamanho da água

 

cidades luminosas

onde cabem todos

os que não têm lugar aqui

 

e por essa sorte fomos

em barcos

de suor e miséria

 

e nela cavámos

uma ferida aberta

 

no coração


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

 ontem foi o dia internacional das vítimas do holocausto. hoje venho aqui.


há coisas que deveriam

tirar-nos o sono


coisas que nunca deveriam

ter acontecido


e acontecem

sê abundante no que faças

sobeja-te

 

transborda de ti

o que movas nas palavras

 

pois todos sabemos

como o ser humano é tardio

 

mas há nas árvores

e nos pássaros

um espírito de abundância

 

e já que toda a sombra

vem da luz

 

reclama em ti

o dom da sementeira


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

definição de poeta

observador de gatos

 

definição de gato

um pássaro

no coração

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

talvez um dia as árvores

se lembrem de nós

 

de quando os nossos nomes

tinham rostos

 

e nós então

tão perto

de tudo o que tocámos

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

 (em Quadrazais)


 

 I

 

Tudo sossegado no meu país.

As rosas voltaram a estar quietas.

Os estorninhos regressaram hoje à grande tília.

Já não passam carros de fora

nem se ouvem palavras estrangeiras.

Algumas nuvens fazem lembrar a chuva,

o sino há uns dias que não toca.

Uma lua muito grande cresceu sobre a noite

e os castanheiros do meu país.

 

Vim trazer-te o coração.

 

II

 

Uma luz ao fundo da noite,

uma rosa aberta,

uma desertidão,

 

uma estranha calma

no coração.

 

III

 

Inumeráveis rios da alma,

inumeráveis nomes.

Carne e pedra, voz e eco,

 

habitação total.

 

 

IV


Eu nunca ando só no meu país.

Ando sempre eu e as casas,

as giestas, os moinhos, os carreiros,

os meus avós e tios, as lendas e

os contrabandistas e a lua e

o Cirinéu e os lobos e a tia Chau e os castanheiros

e a Praça e o Cimo e a Calle Fundeira

e o Vale e a S. Eufêmia e o S. Gens e o Vale da Ussa

e a Serra da Malcata e o ti Zé Choino e o ti Jagão

e a Escaleira e a Lameira e o rio Côa

e o Lameirão da Ribeira e a Igreja e a Grande Tília

e a fonte e


domingo, 24 de janeiro de 2021

que caminhes na água

 

que atravesses o outro lado

da rua e me abraces

 

que não fiques em silêncio

 

que não seja a minha dor

indiferente da tua

 

que me alegres

 

que não te guardes nem feches

no lado de lá da tua vida

 

abre uma mão e depois a outra

 

para que nenhuma rosa

fique por abrir

 

no coração

um poema

é uma coisa muito séria

 

nele se dizem palavras

que nem as rosas

conhecem

 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

muitos escrevem a um deus

cheio de letras grandes

com intervalos de importância

 

eu dirijo-me a um Deus

que não quer existir-se

para além da nespereira

do meu quintal

 

que louva e canta

a ignorância em todas

as gramáticas do mundo

 

que não quer nem sabe

e vai por onde vai

 

e quando me perguntam

que género de Deus é este

eu apenas posso dizer

 

sei de um pássaro

domingo, 17 de janeiro de 2021

rompi o silêncio

para estar contigo

 

mas tu nunca me vês

 

já não reparas nas minhas mãos

nem perguntas onde estão

 

demasiados pássaros

e poucas rosas

 

e no entanto

ando de par em par

 

em busca

do teu coração

sábado, 16 de janeiro de 2021

que estes poemas

caminhem por entre os homens

 

e não lhes toquem

nem digam

 

pois nenhuma verdade

é mais certa

e por nenhuma verdade

serão medidos

 

que encontrem

uma mão

 

onde trocar de rosa

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

             pablo disse


eis algumas coisas

que morrem

 

as flores que secam

alguns bichos

 

mas nunca os pássaros

 

as árvores cortadas e queimadas

também morrem

e muitas pessoas morrem

 

mas nunca os pais

porque foram feitos

por Deus

 

e Deus só morre se quiser


terça-feira, 12 de janeiro de 2021

aquele que não ouvirás mais

te saúda

 

nos dois ouvidos

e na língua

 

na mão que te acompanha

e na outra

 

nos passos que se afastam

e no coração

 

para que não se ouça

e a língua não divulgue

 

te saúdo em silêncio

 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

                        poema de amor pelo meu filho pablo

 

que este amor seja

uma estrela

 

uma rosa tocada sempre

pela primeira vez

 

mas intocável

 

como são os teus dedos

em movimento

 

e que por mais distante

ainda a mais próxima

 

e nunca morrendo

mesmo findo este corpo

esta sombra este nome

 

e por todo o lado viajando

nos teus passos

 

no teu coração

 

na ponta das árvores

ou na cor dos pássaros

 

infinito mesmo em silêncio

que tu me ouças

 

e não leves mais ninguém

do meu quintal

 

que fales

na minha boca os seus nomes

e assim os protejas da dor

e ausência

 

que nas suas mãos e coração

apenas tomilho e açafrão

 

que não me deixes

mais lugares vazios

domingo, 10 de janeiro de 2021

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

                            (in a noite que nenhuma mão alcança, 2018)

não sei por que querem todos ser eternos. uns esperam um reino que distinga os bons dos maus num lugar onde ao menos durem para sempre; outros desejam permanecer noutras formas, noutros corpos, ou durando em pequenas partículas de alguma coisa ou nada. se soubessem o que eu sei sobre não ter nem um fim nem um início… não ter um ponto onde tivesse começado alguma coisa em que me tornasse para mudar depois em direcção a outra… uma vida de que pudesse recordar alguém que eu tivesse sido. e tivesse um dia sido apenas uma criança e ter tido uma mãe que me abraçasse como se eu fosse o mundo, porque assim era também o seu amor por mim. um pai que me levasse com ele a todos os lugares onde chovesse e me dissesse palavras criadas apenas para mim. e aqueles dias de chuva em correrias pelos campos, as sombras das árvores, os companheiros, as quedas e os muros, dias que guardasse como um tesouro para não os perder da minha vida, e assim nesta edificando mãos que abrissem e abrissem para dentro. se soubessem o que eu sei do que me falta, dando importância às coisas que me passam ao lado e redondas se perdem pelo chão sem um olhar, uma mão, um coração que as guarde do puro abandono. ter encontrado na vida um amigo, alguém que pudesse ter abraçado como se abrisse uma janela e nela visse o mar. ter chorado de tristeza por ter amado alguém que me faltou e assim ter sentido o valor do que ainda me restasse ou tivesse. ter caminhado pelo mundo ou pelas ruas de uma pequena aldeia e saudado os que passavam por mim, sem ódio, sem rancor, grato e generoso pela sua companhia e assim para eles pudesse eu ser também o seu próximo; e então uns e outros fossemos pela vida como se as mãos de cada um fossem as mãos de cada outro. e chegados ao final de todos os dias e de todas as noites compreendêssemos que chegar ao fim não é uma queda em algum abismo, mas alcançar aquilo que todos os poemas anunciam: o silêncio.

pudéssemos todos nascer, viver e morrer simplesmente

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

 

creio em milagres

 

mesmo nos mais simples

e nos que são de qualquer hora

 

como um som na madeira

um peixe na água

 

ou um pássaro

que passa

no céu a voar