poesia, Carlos Lopes Pires

quinta-feira, 27 de junho de 2019

nós

os que vamos morrer

pedimos lembranças
nos vossos corações

um tremor na garganta
e uma espécie
de tristeza

não que nos faça então
alguma diferença

mas porque assim
saberão vocês
que não será
em vão

a nossa dor

                       (in onde crescem as maçãs, 2020)

sábado, 22 de junho de 2019

vivemos junto a razões
que não sabemos

antigamente
colocávamos barquinhos
na água
e ali ficávamos
calados de espanto

a ver o que não sabíamos


agora já não somos as crianças
nem as rosas

que tocávamos no lado
de dentro das janelas

ainda estamos aqui
mas somos já

de outro lado

                     (in onde crescem as maçãs, 2020)

sexta-feira, 21 de junho de 2019

creio em tudo o que cai
creio na harmonia do chão
e seus derivados

creio nas formigas

não creio na gramática
do que está em cima ou voa
pois tudo os atrai para baixo

mas creio no silêncio
que é uma criatura do chão

assim os insectos
que se movem entre as coisas
e as tuas mãos de lama

creio no pó das estradas

             (in a minha poesia é uma ignorância, 2017)

segunda-feira, 17 de junho de 2019

ele não sabia
o que fazer com os poemas

alguns viviam nas mãos
como se fossem aves
mas eram também retratos

outros desprendiam-se
do coração
e tinham vida própria
nas coisas que tocavam

havia até poemas
que traziam palavras
tão pequenas e simples

que eram só de rezar

                    (in onde crescem as maçãs, 2020)

domingo, 16 de junho de 2019

o meu cunhado Júlio, que é espanhol de Madrid, numa viagem que recentemente fizemos a caminha e a santa tecla, ficou maravilhado com tudo o que observou


o meu cunhado júlio
fala com as estrelas

pede-lhes coisas

e elas mostram-lhe
o brilho dos barcos
sobre o rio

a neblina
que desce dos montes

os vultos que se movem
entre as margens

as crianças escrevendo
os dias lentos na areia
e nos desenhos

ou a misteriosa inclinação da luz
quando anoitece

o meu cunhado júlio
que não precisa de falar
por vezes não encontra
palavras para tanta abundância

então
ajoelha-se comovido
e agradece às estrelas
que a vida seja
um prodígio

tão bonito

                 (in onde crescem as maçãs, 2020)
a noite passada
Deus e eu fomos rezar
pela paz no mundo

e isto funciona? perguntei

não
mas tornamo-nos melhores

e ajoelhou-se
entre as lágrimas e o chão

                       (in onde crescem as maçãs, 2020)
sê abundante no que faças
sobeja-te

transborda de ti
o que movas nas palavras

pois todos sabemos
como o ser humano é tardio

mas há nas árvores
e nos pássaros
um espírito de abundância

e já que toda a sombra
vem da luz

reclama em ti
o dom da sementeira

            (in onde crescem as maçãs, 2020)

quinta-feira, 13 de junho de 2019

                             melancólico

se fôssemos como a chuva

e guardássemos na memória
as casas e os abraços
dos amigos

ou como a água do inverno
nas caleiras dos telhados
as lágrimas de tudo
o que nos doeu

o que a pouco e pouco se foi
sem nada deixar
na paisagem

nem rastos nem marcas
nem um sinal que seja

desta inútil passagem

                            (in onde crescem as maçãs, 2020)

sexta-feira, 7 de junho de 2019

                 poema quase popular de sabor amargo


há um país de mentiras
em que tudo parece verdade

onde há ricos que são pobres
e pobres muito ricos

um país que é nosso
mas onde nada nos pertence

enganados roubados
espoliados por intenções
actos e omissões

na saúde na educação
e em todo o quotidiano

um país que é falso
e onde nada bate certo

sábado, 1 de junho de 2019


já me disseram
que patitas não era um gato

mas uma visita
que Deus me fez
para encher-me o coração
de abundância

e depois se foi embora
porque ser gato

é melhor que ser Deus
e nunca poder morrer