poesia, Carlos Lopes Pires

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

 

vou à cidade

mas não conto encontrar-te

 

vou entre algumas coisas

perdidas

 

um pouco de vento

alguma chuva

 

transporto-me

no coração

domingo, 1 de novembro de 2020

aquele que viu o mundo

mas nunca nele entrou

 

aquele

e o outro que não encontrou

um caminho a seguir

 

um pássaro um peixe

uma sombra que nos dois

juntasse

 

ó tu

começa por saber

de ti

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 

tudo

se passou junto à oliveira

 

mas nada que possas

contar aos outros homens

 

aos que seguem

aos que virão

 

aos que

não sabem das estrelas

a gramática da luz

domingo, 11 de outubro de 2020

 

toca cada um

dos teus amigos

 

cria neles as raízes

com que se fazem milagres

 

pois nada

pode comparar-se

ao que se abre


em cada uma das feridas

 

a que deste um nome

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

 

não esperarei por ti

 

não há comboios

para a tua inexistência

 

nada nos conduz

à tua porta

 

não estás em algum

outro lugar do mundo

e nós dizermos

ah estás aqui

 

repito

damos as mãos

e passeamos as sombras

domingo, 17 de maio de 2020


hoje de manhã cedo tive uma conversa com um pequeno bando de pardais, que se refastelavam numa das nespereiras do quintal. continuo sem entender como falaram comigo, mas fizeram-me seis revelações.


primeira revelação: os poemas não são palavras: desenham palavras num espaço inexistente.

segunda revelação: os poemas fazem existir coisas que antes não existiam, embora quisessem existir, e por isso andavam à chuva.

terceira revelação: o mundo é uma coisa demasiado grande para poder fazer-se com apenas duas palavras. por isso foi criado com uma.

quarta revelação: um dia haverá um poema que nenhuma palavra poderá dizer, porque dirá as palavras todas, e nenhuma ficará de fora.

quinta revelação: um poeta não arranja palavras para fazer um poema. ele procura rosas entre os pássaros.

sexta revelação: o poeta é um trocador de rosas. vive num pássaro.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

o meu coração
seja por ti pesado

e seja
o vulto de uma rosa
ou a pena de um pássaro
por ti

e por ti perdoado

dá-me assim as cores
e nelas a gratidão

dá-me quietude
quando o meu coração
por ti pesado