poesia, Carlos Lopes Pires

segunda-feira, 12 de novembro de 2018


Começo

 
Vi como tudo começou na terra dos homens.

O ar, o frio, o músculo, o longo braço das manhãs
em busca da claridade.
Vi o tempo expandir-se
no uivo do lobo e na manha da raposa.
Vi o apego da formiga na dureza da madeira.
Vi como a criatura dominou a terra,
porque é na água que tudo começa.
Vi como as coisas prosseguiram
em desenhos circulares nas rochas,
e a forma que depois tomaram,
atravessando as clareiras da floresta
em direcção aos rios.
Vi que o mundo estava frio:
o frio sobre a mesa,
o frio sobre a porta de entrada.
Vi o frio transformar-se em canções.
Vi como o olhar do melro
pesou sobre o silêncio dos telhados,
e como a chuva tem origem em certas estações.

Nada mais havia, e vi que o mundo formou as suas cinzas
a partir das areias e dos peixes que há nos lagos.
Vi alguns homens de joelhos, fazendo estranhas orações.
Vi, então, que os homens têm olhos animais
e abismos no coração.
E vi que este é o princípio de toda a dor.

Vi que tudo começa no coração dos homens.

                                     (Em cada um, 2001)
 

1 comentário:

  1. Sim, Carlos Pires. O que é a Literatura sem a poesia?!
    Quando se sente o poema, então não há que duvidar que a Poesia é Literatura. A não ser que a Poesia fique muito para além da Literatura!
    ...
    Infinitamente para além.

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