poesia, Carlos Lopes Pires

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

                            (in a noite que nenhuma mão alcança, 2018)

não sei por que querem todos ser eternos. uns esperam um reino que distinga os bons dos maus num lugar onde ao menos durem para sempre; outros desejam permanecer noutras formas, noutros corpos, ou durando em pequenas partículas de alguma coisa ou nada. se soubessem o que eu sei sobre não ter nem um fim nem um início… não ter um ponto onde tivesse começado alguma coisa em que me tornasse para mudar depois em direcção a outra… uma vida de que pudesse recordar alguém que eu tivesse sido. e tivesse um dia sido apenas uma criança e ter tido uma mãe que me abraçasse como se eu fosse o mundo, porque assim era também o seu amor por mim. um pai que me levasse com ele a todos os lugares onde chovesse e me dissesse palavras criadas apenas para mim. e aqueles dias de chuva em correrias pelos campos, as sombras das árvores, os companheiros, as quedas e os muros, dias que guardasse como um tesouro para não os perder da minha vida, e assim nesta edificando mãos que abrissem e abrissem para dentro. se soubessem o que eu sei do que me falta, dando importância às coisas que me passam ao lado e redondas se perdem pelo chão sem um olhar, uma mão, um coração que as guarde do puro abandono. ter encontrado na vida um amigo, alguém que pudesse ter abraçado como se abrisse uma janela e nela visse o mar. ter chorado de tristeza por ter amado alguém que me faltou e assim ter sentido o valor do que ainda me restasse ou tivesse. ter caminhado pelo mundo ou pelas ruas de uma pequena aldeia e saudado os que passavam por mim, sem ódio, sem rancor, grato e generoso pela sua companhia e assim para eles pudesse eu ser também o seu próximo; e então uns e outros fossemos pela vida como se as mãos de cada um fossem as mãos de cada outro. e chegados ao final de todos os dias e de todas as noites compreendêssemos que chegar ao fim não é uma queda em algum abismo, mas alcançar aquilo que todos os poemas anunciam: o silêncio.

pudéssemos todos nascer, viver e morrer simplesmente

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