poesia, Carlos Lopes Pires

quarta-feira, 21 de março de 2018

                              Doer

Já nada me dói.
Atravessei agora mesmo a rosa
que há no fundo do coração.

Dantes doía e era como um relógio,
sempre certo, sempre fixo,
e uma pintura qualquer
pendurada na sala-de-estar,
que me fazia lembrar alguém desconhecido,
mas que afinal eras apenas tu.

Nesse tempo tudo me doía.
Doíam-me os olhos e as janelas
que davam para a rua. Doíam-me os passeios
das ruas com pessoas cheias de pressa de ir
para lado nenhum.
Doía-me ser jovem e ter de esperar, noite após noite,
o tempo a passar por entre as asas dos pardais.
Havia dias em que me doíam mais as gaivotas
e os barcos pousados sobre o mar
e não o meu rosto no espelho a transformar-se.

E doía-me ser pequeno
e ter ainda tudo tão longe e fora de mim.
Mais tarde doeu-me a morte do avô
e o vazio que ficou entre o rio e as amoras.

Não sei se é assim com toda a gente,
mas a mim aconteceu doer a própria vida.
Depois, a gente envelhece,
e habitua-se aos espinhos

que a rosa tem.

                                 (1998, inédito)

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